O culto familiar é descrito por Jerry Marcelino como um tesouro perdido (Redescobrindo o Tesouro Perdido do Culto Familiar). E, de fato, ao longo dos séculos essa prática foi sendo abandonada aos poucos.
Embora tenhamos muitos ambientes em que o culto familiar ainda é reverenciado, e tem sido trago novamente à tona aos poucos, como nos círculos reformados, os últimos grandes defensores de modo expressivo do culto familiar foram os puritanos, e isso no final do séc XVI. Na verdade, os puritanos eram conhecidos exatamente por seu zelo com as famílias. Eles davam muita importância ao devocional diário em família, o que chamavam de culto doméstico.
Hoje em dia, não é comum ouvir falar sobre uma família que pratica o culto familiar. Mas A. W. Pink dá uma direção valiosa ao dizer que tudo o que acontece na casa de uma família cristã deve servir como "selo do chamado divino dos crentes", de modo que toda e qualquer ação deve indicar a presença de Deus no lar. E isso deve ser notado por todos os que foram ao seu lar.
Jonathan Edwards, por exemplo, aconselhava aos homens de sua igreja a desde cedo afadigarem-se em "ensinar, aconselhar e orientar seus filhos na disciplina e admoestação do Senhor", pois a chance de conseguir influenciá-los na fé cristã e de que permanecessem nessa fé era maior, ecoando, assim, Provérbios 22.6.
Muitos são os homens e mulheres que defendem o culto familiar, e isso por um motivo: o culto familiar é apoiado pelas Escrituras, e veremos alguns textos sobre isso.
Mas antes de começarmos, deixe-me fazer uma observação. As nomenclaturas podem ser muitas, culto doméstico, culto familiar, culto caseiro, etc. Entretanto escolhi usar a designação "culto familiar" pois creio que ela indica melhor a realidade do que é essa prática. Creio que as nomenclaturas "culto doméstico" e/ou "culto caseiro" prendem nossa mente ao ambiente da casa, além de que perdem um pouco da ênfase no termo família.
Culto familiar indica em primeiro lugar que a família deve estar presente, logo, não é algo para ser feito simplesmente por um ou apenas alguns membros da família (a palavra "família" na Bíblia quase sempre se refere às pessoas que moram na casa). Além disso, essa designação desprende-nos da ideia de que deva ser realizado apenas em casa. Onde a família estiver presente (em casa, num parque, em viagem, etc),o culto familiar pode acontecer. Dito isso, vamos analisar alguns textos.
1. Deuteronômio 6.4
“Estes são os mandamentos, os estatutos e as ordenanças que o Senhor, o seu Deus, ordenou que eu ensinasse a vocês para que os cumpram na terra em que vão entrar para dela tomar posse. Desse modo, vocês, os seus filhos e os seus netos temerão ao Senhor, o seu Deus, e obedecerão a todos os seus estatutos e mandamentos que eu lhes ordeno, todos os dias da sua vida, para que tenham vida longa. Ouça e obedeça, ó Israel! Assim, tudo lhe irá bem e você será muito numeroso em uma terra onde fluem leite e mel, como lhe prometeu o Senhor, o Deus dos seus antepassados. Ouça, Israel: o Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor. Ame ao Senhor, o seu Deus, com todo o seu coração, com toda a sua alma e com todas as suas forças. Que todas estas palavras que hoje lhe ordeno estejam no seu coração. Ensine-as com persistência aos seus filhos. Fale sobre elas quando estiver sentado em casa e quando andar pelo caminho; quando se deitar e quando se levantar. Amarre-as como sinal nas mãos e prenda-as na testa. Escreva-as nos batentes das portas da sua casa e nos seus portões.”
Vale começar ressaltando que Deus ordena que os pais primeiro obedecessem a Ele (v.1-5). Eles deveriam amar ao Senhor acima de tudo, e os Seus mandamentos deveriam estar em seus corações (v.1- 6). Uma lição importante sobre o culto familiar é que ele terá correta influência na vida dos filhos se os pais, primeiro, forem comprometidos com o Senhor. O zelo e paixão em obedecer ao Senhor deveriam ser ensinados pelos pais. "Se os pais não forem visivelmente sinceros, não podemos esperar que os filhos o sejam." (John Angell James)
A ordem de Deus é que os pais ensinassem a seus filhos as Suas leis com persistência, e por um motivo: era o desejo de Deus que a obediência aos seus mandamentos fosse uma prática entre as gerações de Israel (v.2). A própria Páscoa foi estabelecida para ser celebrada em família, sentados a mesa, e deveria ser lembrada e celebrada por todas as gerações em Israel (Êx 12.3,14). Ao dar mandamentos, Deus esperava que seu povo continuasse fiel a eles, geração após geração. O Senhor havia declarado que Seu nome seria lembrado geração após geração em Israel (Êx 3.15). A persistência era necessária pois os filhos poderiam não responder bem em primeiro momento, seja por resistência, ou por ignorância; mas com o tempo seus corações seriam alcançados. Essa mesma persistência ajudaria a evitar o que, mais tarde, aconteceu com Israel (Jz 2.10,11).
Essa persistência é exemplificada nos versículos seguintes quando diz que os pais deveriam usar todos os momentos e artifícios possíveis e necessários para cumprir essa ordem divina. Isso indica que esse ensino deveria ser feito com paciência e dedicação. Não pode estar se referindo a simplesmente alguns comentários sobre as leis, e sim a momentos de qualidade e zelo. O culto familiar é um ótimo indício do está sendo prescrito nesses versículos.
2. Josué 24.15
"Se, porém, não agrada a vocês servir ao Senhor, escolham hoje a quem irão servir, se aos deuses que os seus antepassados serviram além do Eufrates, ou aos deuses dos amorreus, em cuja terra vocês estão vivendo. Mas eu e a minha família serviremos ao Senhor."
Josué deixa claro que, no que dependesse dele, toda a sua casa serviria ao Senhor até sua morte. Josué não declara isso como um sentimento de esperança futura ou algo como uma profecia sobre sua família. Pelo contrário, como líder de sua família, Josué assume a reponsabilidade de guiar os seus a serem separados totalmente para a vida do Senhor, a começar daquela mesma hora. Embora fosse líder de todo o Israel, Josué bem sabia que, no fim, ele não conseguiria fazer com que todo o povo continuasse seguindo ao Senhor para o resto de suas vidas.
A escolha estava com eles no fim. Porém, com essa declaração ele deixa claro que todo o seu esforço estaria em levar sua família aos pés do Senhor. Antes de ser líder de Israel, ele era líder de sua família, por isso, deveria zelar para que sua casa servisse ao Senhor, não se iludindo com os falsos deuses das nações vizinhas.
3. Efésios 6.4
"E vós, pais, não provoqueis à ira a vossos filhos, mas criai-os na doutrina e admoestação do Senhor."
O apóstolo Paulo está dando conselhos a três grupos na igreja de Éfeso, filhos, pais e servos. Quando fala aos pais, ele dá duas instruções, fazendo um contraponto entre elas. O contraponto de provocar os filhos à ira é criá-los no caminho do Senhor. Acima, Paulo havia relembrado aos filhos sua responsabilidade de honrar aos pais, citando um dos Dez Mandamentos (v. 1-3).
Se os pais deixassem de irritar seus filhos e passasse a os ensinar a Lei de Deus, os filhos seriam tanto obedientes aos pais, quanto tementes a Deus pois estariam obedecendo ao mandamento divino. Vale destacar o que apóstolo Paulo define esse ensino dos pais aos filhos dizendo que eles deveriam doutrinar seus filhos com a Palavra de Deus e admoestá-los, ou seja, ensinar-lhes as doutrinas da Escritura e corrigi-los quando necessário, usando as palavras do Senhor.
Uma vez que Paulo está tratando de questões do dia a dia, pode-se enxergar de modo implícito o culto familiar nesse texto. Isso ecoa o já citado texto de Dt 6. Os filhos devem ser doutrinados na Palavra do Senhor, e isso não é feito em um simples culto público; demanda tempo e desenvolvimento. Assim como a correção não deve ser feita de modo apressado, e sim com amor, seriedade, brandura, firmeza e paciência.
Logo, podemos claramente enxergar que Paulo está se referindo a um tipo de ensino diário. Podemos chamar isso de culto familiar.
O que se concluiu?
A prática do culto doméstico afeta a cristandade da família em, no mínimo, duas áreas. A primeira delas é a área espiritual dos novos cristãos. Através de reuniões diárias/semanais de adoração, estudo da Palavra e oração, os pais conseguem ensinar, aconselhar, corrigir e conduzir melhor a qualidade da fé da família. Conseguem evangelizar melhor seus filhos. “Devemos lembrar que o culto familiar pode ser um instrumento que resultará em trazê-los [filhos] a Cristo (2Tm 3.15).
O culto familiar lhes fornecerá, em seu próprio lar, uma circunstância em que tenham reflexão saudável e prudente, discussão, interação, assimilação e, felizmente, aplicação das coisas mais necessárias para o bem-estar eterno da alma deles.” (Jerry Marcelino). Assim como nos dias de Josué, hoje existem falsos deuses dos quais as famílias cristãs devem se guardar.
A segunda área afetada seria a área do evangelismo. Embora o cristão deva exercer influência sobre a sociedade, de modo a torná-la melhor e preparada para a volta de Cristo, a maior função ainda está em sua casa. E a melhor maneira de fazer isso é no dia a dia em família, através de ferramentas como o culto familiar.
Se mais famílias cristãs tivessem o hábito de praticar o culto familiar com regularidade e comprometimento, a influência do cristianismo seria bem maior na sociedade. Mais crianças e jovens seriam comprometidos com o Reino de Deus e, com isso, haveria mais esferas sendo tocadas pelo evangelho.
O culto familiar, se implantado, deve ser de grande estima pela família; especialmente pelos pais. Deve ser feito com regularidade, dedicação, paciência e fé; deve se ter a intenção de evangelizar e alcançar o coração da família. Se bem feito, ele protege, fortalece, corrige e aumenta a fé da família. Dentre muitas coisas essenciais nessa vida, a saúde espiritual de nossa família deve estar em primeiro lugar (1Tm5.8).
Por Dhaniel Harald