Ao falar sobre graça, um erro clássico que é cometido pelos estudantes é o chamado “correr atrás das palavras”. No desejo de entender o que é a “graça” a pessoa procura o significado desse termo no original e vai à caça dos versículos correspondentes para concluir seu estudo.
Mas esse caminho não trará um conhecimento verdadeiro sobre o tema. Nunca se pode esquecer que uma palavra não é somente o que consta no dicionário, mas ela abarca uma realidade complexa, dinâmica e infinitamente maior .
Ou seja, uma palavra não é só uma palavra, mas aponta uma experiência real, algo que transcende um conjunto de sílabas. Neste caso, ao estudar as Escrituras, é preciso considerar que a palavra graça diz respeito a uma ação real na história que foi registrada na Bíblia.
É olhando para as experiências reais e não para as palavras, que podemos falar posteriormente sobre uma “doutrina da graça”. Graça é uma Revelação real, um fato. Doutrina é uma conclusão posterior, que busca explicar ou sustentar o fato.
Para clarear um pouco o que está sendo dito até aqui, vejamos algumas experiências da Graça registradas na Bíblia.
No Antigo Testamento
O maior se inclinando para o menor com benevolência:
As palavras hebraicas hanan/hen demonstram a atitude do “maior se inclinando para o menor com benevolência”. Podemos perceber essa atitude em diversos textos (Gn 6.8; Gn 32.6; Gn 39.4; 1Sm 16.21–22), do qual hanan está ligado a quem dá a graça (e é superior) e hen se refere a quem recebe a graça (e é o servo). Na forma verbal, o verbo hanan significa “ter misericórdia” e hen é seu substantivo, que poderá significar um favor gratuito, próprio dos soberanos, que inclinam seu olhar aqueles que são seus subalternos. Na LXX esse termo será traduzido pela palavra grega “charis”.
Deus afastando-se de sua ira e voltando-se com compaixão para o ser humano que se distanciou:
A palavra hebraica Hesed demonstra a situação do próprio Deus substituindo a sua ira por compaixão ao ser humano (Os 11; Ex 34.6–7). Hesed também está ligado a outros termos que indicam benevolência de Deus em favor do seu povo, como Rahamim que um sentimento materno em relação ao fruto das entranhas (Jl 2.13; Jn 4.2). Podemos dizer que Hesed tem relação quando falamos da misericórdia de Deus (graça de Deus) que trazem outros termos juntos como hen e rahamim. Além disso, Hesed aparece no contexto da Aliança, o modo de comportar-se de Deus em favor dos que tem uma aliança com ele, uma relação com a palavra fidelidade. Temos então nessa palavra um significado de uma graça de Deus que é plena e também salva. Na LXX Hesed será traduzido geralmente por éleos.
Criação:
O que é descrito é Gn 2.8 faz com que vejamos esse “paraíso”, a criação de Deus, como uma ação de “Graça”. É uma narração de uma realidade, como se ainda que o homem não tenha assumido aquela “graça-paraíso” no primeiro momento de sua história, essa “graça-paraíso” estava ali disponível, como uma oferta divina. A criação pode ser entendida como o dom da graça dada à humanidade desde sua primeira aparição na terra.
Ou seja, o ato de criar e dar vida ao mundo foi identificado também como graça, mesmo que essa palavra não estivesse ali.
Escolhido:
Acompanhando a narrativa de Gênesis podemos concluir que “Deus cria para salvar”. A criação se realiza tendo um horizonte a aliança, que pressupõe uma eleição. Essa “eleição” significa que Deus “ultrapassa” o pecado cometido e elege um povo para que, através deste, toda a humanidade possa conhecer sua misericórdia (cf. Ez 16). O povo é o primeiro destinatário da eleição divina, não esse ou aquele indivíduo sozinho (Dt 7.6ss). A eleição de indivíduos se relaciona com a história da eleição do povo (Gn 12.3). Ou seja, toda a salvação eletiva de Deus tem um olhar para toda a humanidade. Até mesmo Israel, povo eleito por Deus, deve ser luz para as nações (Is 42.6–7).
Aliança:
A “eleição” (que citamos anteriormente) exige um compromisso das duas partes (Ex 6.7; Jr 32.38). Essa relação amorosa exige a fidelidade e, a Aliança, é um compromisso de amor eterno feito por Deus que exige por parte do povo a sua aceitação (Dt 30.15–20; Dt 26.17–19). Israel faz do Senhor o seu Deus, por isso a Salvação começa a surgir como objeto de esperança: o israelita que cumpre a Lei terá a graça como recompensa.
No Novo Testamento
Foi dito anteriormente que a LXX utilizará o termo hesed para a tradução do grego charis. Essa palavra foi muito utilizada por Paulo para exprimir a novidade cristã. Em Paulo, esse termo abarca a totalidade dos conteúdos que também citamos anteriormente sobre o Antigo Testamento. Para ele, a graça será a totalidade da obra do Filho e do Espírito como manifestação do amor benévolo e gratuito do Pai.
No Novo Testamento veremos que o nome da graça é Jesus Cristo. É Jesus que é o dom de Deus (Jo 3.16; Lc 2.40; Lc 2.52; Lc 4.22; Jo 1.14; Jo 1.16–17).
Quando os evangelhos sinóticos apresentam a pregação do Reino de Deus como um convite à conversão e à fé na boa nova, aí temos também o tema da Graça (Mc 1.15; Lc 4.18). O seguimento de Jesus proporcionado aos seus discípulos também é atuação da graça (Mc 4.11). As três parábolas descritas em Lc 15 demonstram também uma predileção divina pelos pecadores, onde podemos ver a relação de graça do Pai com uma humanidade pecadora.
Entendendo o que é a Revelação da Graça
Todos esses insights apresentados significam que não entendemos o que chamamos de “graça” procurando onde essas palavras se repetem na Escritura, porque graça é apenas uma palavra para designar uma realidade, uma fato, uma experiência real.
Logo, quando dizemos que “graça é favor imerecido”, estamos dando a definição de uma palavra, não o que é a Revelação da Graça de Deus. Pois a revelação da graça se dá como fato quando Deus está crianço, libertando um povo do Egito, entregando seus mandamentos; enviando o Seu Filho e etc.
A revelação da graça é uma atitude concreta de Deus que se dá na história. São ações que foram registradas na Bíblia e que continuam acontecendo, pois Deus continua agindo no mundo.
É por isso que quando vamos falar sobre a ação da graça, não podemos correr atrás da palavra graça na Bíblia e buscar entender o que ela significa, fazendo uma junção ou sistema de versículos. Para entender a Revelação da graça é mais coerente pegarmos nossas Bíblia e expormos as histórias que Deus agiu.
A palavra graça é apenas uma designação para uma ação de Deus, sua Revelação ao mundo. Graça não é uma experiência única e exclusiva. Pode ser Deus curando um paralítico; perdoando pecados; concedendo um pedido de oração; sustentando o mundo ou capacitando para a evangelização. Toda a ação de Deus no mundo pode ser designado como Revelação da sua graça.
Entendendo o que é Doutrina da Graça
Já a doutrina da Graça é uma teologia. Ela olha para a Escritura e vê todas as histórias, os ensinos, toda essa Revelação de Deus e faz a pergunta: o que podemos concluir disso tudo?
Uma das conclusões que a doutrina da graça chegou é que o homem não tem a capacidade de cumprir todos os mandamentos para se salvar, mas depende da misericórdia de Deus, pois só a Sua ação benevolente justifica o homem.
Isso não significa, por exemplo, que estamos isentos de cumprir mandamentos. Se olharmos a revelação da Graça de Deus fica claro que o Senhor chama seu povo para fidelidade e Jesus convoca seus discípulos para segui-lo e obedecê-lo. Ou seja, ser chamado é uma atitude de graça, sua manifestação e apresentação é o motivo para darmos os passos em fidelidade a Ele.
O que precisa ficar claro é que uma doutrina é uma explicação ou conclusão de fatos reais e concretos que aconteceram na história. No caso, é uma teologia baseada na Revelação de Deus na história.
Conclusão
Conto essa distinção porque estamos num tempo em que pessoas desejam se aventurar na teologia, na leitura bíblica e em proferir estudos bíblicos, mas rapidamente se perdem na teoria, esquecendo da vivência prática e a essência do que estão estudando.
A Graça é a ação salvífica de Deus na história, é a economia de Deus; que torna-se “doutrina da graça” quando analisamos a presença salvadora de Deus em toda a história.
Não podemos nos prender ao termo graça, a palavra original sobre graça, ao que Lutero ou Calvino falaram sobre graça, e esquecermos de vivenciar e permanecer nessa graça. A melhor forma de entender uma doutrina é tentado experimentar o que ela aponta na sua própria vida.
Talvez você já esteja no seguimento com Jesus, mas não consegue parar de se culpar por algo que já cometeu. Não seria a hora de experimentar na sua própria história o perdão da graça de Deus?
Que não nos esqueçamos que a Bíblia não chegou até nós apenas para ser lida, mas vivida.
01/09/2020
Victor Santos - Teologia pela PUC-SP; professor e membro na Assembleia de Deus em Santo André.
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